Nem só de artigos sisudos vive o mundo jurídico. Nesta nova seção, resolvemos tirar a gravata, afiar a pena e encarar o Direito como ele se apresenta no dia a dia: cheio de burocracia mal-intencionada, contratos com letras miúdas e “pegadinhas legais” que muita gente aceita por hábito, medo ou cansaço.
Aqui, você vai encontrar crônicas ácidas, cômicas e, quando necessário, indignadas. Narrativas baseadas em fatos quase reais, ou talvez reais demais, em que o absurdo jurídico se veste de normalidade, e a esperteza se esconde atrás de cláusulas “padrão”.
Ria, reconheça-se, indigne-se.
E lembre-se: o contrato é de papel, mas o prejuízo costuma vir em carne viva.
O IPTU de Dona Nair
Dona Nair, viúva há 11 anos e meio, morava com a gata Filomena e o armário embutido que o falecido custou vinte parcelas pra pagar. Quando resolveu alugar o antigo apartamento da sogra, pensou: “Vamos fazer tudo certo, conforme a lei, como manda o figurino. Nada de enrosco.” Procurou a Imobiliária Filhos da Pérola, famosa por empacotar contratos como quem vende caixão: lacrado, sem ver o defunto.
O novo inquilino, Seu Genésio, era um bancário aposentado que só queria sossego. Leu o contrato? Claro. As primeiras duas linhas. Achou que “IGP-M” era algum imposto sobre geladeira. Assinou. A assinatura saiu até torta de tanta confiança.
Dois meses depois, chegou o carnê do IPTU. R$ 1.473,21. Genésio quase engasgou no chá de camomila. Ligou pra Imobiliária.
— Isso aqui tá errado. Eu não sou o dono.
— Mas tá no contrato, senhor. O senhor assinou. Página 4, parágrafo 3º, inciso XIII.
— Página quatro?! O contrato tinha mais de duas!
— Senhor, estava tudo bem claro. Inclusive estava em negrito.
— Estava em fonte tamanho 8. Com negrito em cinza-claro!
A atendente respondeu com a firmeza de quem já recitou aquele artigo da Lei do Inquilinato mais vezes do que Ave-Marias num velório:
— A cláusula é perfeitamente legal, senhor. O senhor aceitou. Liberdade contratual, sabe?
Liberdade. Palavra bonita. Genésio pensou que liberdade era viver sem boletos, sem carnê da prefeitura, sem cláusula com nome de doença venérea.
Foi então que descobriu: o Brasil é uma terra em que quem aluga paga como se fosse dono, mas não pode pintar a parede sem pedir bênção. Um país onde a “liberdade contratual” serve para o forte empurrar ao fraco aquilo que deveria ser seu encargo e se o fraco reclama, é porque não leu.
Dona Nair, por sua vez, estava feliz. Disse para a vizinha que “o contrato ficou uma beleza”. Repassava todos os boletos pro Genésio, até os da taxa de incêndio. “Vai que a Filomena resolve fumar escondido, né?”
Genésio pagou. Resmungou, mas pagou. E jurou que na próxima vez levaria o contrato pra um advogado ler.
Ou pra um padre. Pelo menos esse tem prática com confissões involuntárias.